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Como a literatura de amor LGBT combate a opressão

Contra o conservadorismo crescente e o apagamento sistemático, escritores LGBTQI+ lançam novas narrativas para a paixão e ganham mais destaque no meio literário.

por Redação MundoMais

Sexta-feira, 16 de Abril de 2021

Mais de 2500 anos separam os versos da poeta grega Safo das imagens de um beijo gay entre os personagens Hulkling e Wiccano na HQ “Vingadores: A Cruzada das Crianças” (Editorial Salvat, 2017). Celebrada por cantar o amor entre mulheres no século 6 a.C. e uma das poucas vozes femininas da Antiguidade a atravessar os séculos, a popularidade de Safo em seu tempo provavelmente entraria na mira do ex-prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella, que mandou recolher os exemplares da história em quadrinhos durante a Bienal do Livro carioca em 2019.

Como os fragmentos da obra de Safo atestam, pelo menos desde a Grécia Antiga histórias de amor LGBTQI+ existem na literatura. E se, durante muito tempo, a elas foi reservado um lugar de clandestinidade e censura, hoje despertam cada vez mais a atenção do público e da crítica, a despeito do avanço do conservadorismo personalizado em Crivellas e afins. “É algo que antes podia ser muito restrito à pesquisa acadêmica de resgate e agora também é genuíno em muitas pessoas leitoras. É uma coisa que tem se expandido”, observa Natália Borges Polesso. Estudiosa do tema e escritora, ela venceu o prêmio Jabuti em 2016 com “Amora” (Não Editora, 2015), coletânea de contos protagonizados por mulheres lésbicas.

Polesso faz parte de uma geração de autoras e autores que ocupa não só cada vez mais estantes mas espaços de prestígio literário, como premiações e grandes eventos — a última edição da Flip, por exemplo, teve mesas debatendo a sexualidade com Paul B. Preciado, Caetano Veloso, Danez Smith e Jota Mombaça —, com produções que fogem às narrativas cisheteronormativas cristalizadas no imaginário dos leitores ao longo do tempo. “Hoje a gente tem muito mais interesse de pessoas LGBTQI+ escrevendo sobre personagens LGBTQI+, e isso não era tão óbvio há alguns anos”, diz a escritora.

De fato, o apagamento e o tabu assombraram autores e obras que abordavam o amor e a sexualidade não-padrão. Mesmo consagrados no cânone, nomes como Mário de Andrade e Virginia Woolf tiveram esse viés de sua vida e literatura empurrados para debaixo do tapete, muitas vezes tratados de forma ambígua ou velada. “O caso não foi de marginalização, mas outros elementos foram colocados em jogo, fazendo com que as questões gays presentes nas obras não fossem vistas e analisadas pela crítica e pelos leitores”, explica Mário César Lugarinho, professor e pesquisador do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP.

Um olhar que vem se transformando: não só há um resgate daquelas e daqueles que caíram no esquecimento — de Maria Firmino dos Reis, primeira romancista negra do Brasil e que também escreveu poemas de amor para mulheres, a Ruddy Pinho, primeira pessoa trans a publicar um livro no país e a se candidatar a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras — como uma ressignificação dos mais reconhecidos. “Estamos caminhando para outros entendimentos de sexualidade e de relacionamento, e os apagamentos começam a ser vistos, compreendidos, mencionados. Isso muda nosso quadro de referência tanto historicamente quanto na produção contemporânea”, diz Polesso.

Da tragédia aos amores possíveis

Não à toa, a marginalização das histórias de amor LGBTQI+ conferiu a elas rótulos e enredos atrelados às normas da sociedade patriarcal. Até em autores celebrados por dar voz a essas paixões, como Caio Fernando Abreu e Cassandra Rios, ou em best-sellers recentes do calibre de “Me Chame Pelo Seu Nome” (Intrínseca, 2018), paira por vezes uma atmosfera de solidão, infelicidade ou perversão. “Existe nessas produções um padrão da irrealização do amor entre pessoas iguais”, avalia Lugarinho.

Por isso, questionar essa forma de retratar os romances têm feito parte da crítica e da escrita atuais. “Há uma onda de mostrar que as personagens eram problemáticas, dando mais uma volta no parafuso ao olhar para essas obras”, afirma Polesso. “Temos conseguido ler mais diversamente a literatura LGBTQI+, porque anos atrás era só insinuação ou aquela coisa triste, sofrida, proibida, às vezes perversa. Esse discurso já não é mais o mesmo.”

Escrever sobre os amores possíveis, então, é uma grande virada na criação literária LGBTQI+ da última década. “Estamos falando por nós mesmas e podendo contar nossas próprias histórias de amor, do nosso ponto de vista”, diz a poeta trans Kika Sena. “É um exercício porque isso sempre veio da perspectiva e do estereótipo do sofrimento, como se nossos corpos tivessem esse destino justamente associado a uma normatividade que define a quem pode pertencer o amor.”

Para Sena, no entanto, não é só o amor romântico que entra na conta. “Essas narrativas obviamente têm sua importância na desconstrução do olhar sobre os nossos corpos, mas temos que ver o amor nas várias camadas da existência humana. Isso facilita a compreensão de que outros corpos amam, se relacionam e trocam afeto para além do amor romântico”, diz ela, mencionando que sua grande paixão atualmente é o filho de sete meses.

Polesso também considera importante trazer outros sentimentos e temas universais da tradição literária para personagens LGBTQI+, como ela faz no romance “Controle” (Companhia das Letras, 2019). “Por que essas coisas seriam excludentes? Nunca diríamos se o personagem é hétero”, questiona. No entanto, ela acredita que, para pessoas LGBTQI+, se identificar em amores felizes pode ser realmente uma experiência catártica.

Afinal, é uma questão de representatividade: se, por excelência, a literatura “nos salva da mesmice do mundo e nos mostra “outras formas de ser”, como observa Lugarinho, escrever e ler histórias de amor, em suas dimensões diversas, é uma maneira de escapar a padrões rígidos e violentamente impostos durante tanto tempo. “É bonito, mas também é triste: as pessoas têm a necessidade de saber que são amores possíveis, porque a gente vive em um mundo extremamente agressivo contra esse tipo de relação”, diz Polesso.

Por: Mariana Payno

20-04-2021 às 01:04 Josephe
Ebok Livreixans noiser put gringous analphas literatur caralhows grows americans. Hó may gody!!!
18-04-2021 às 08:49 pc
Gostei muito do artigo e quero lembrar que o esse mesmo movimento vem acontecendo, muito aos poucos ainda, na produção cinematográfica também. Alguns filmes que tratam de nossa temática tem sido feitos com a preocupação em construir os desfechos com narrativas de felicidade possível. Talvez seja porque hoje já temos mais de nós escrevendo sobre nossas histórias. Nesse sentido, tem a ver com "lugar de fala", como diria a Djamila Ribeiro.
16-04-2021 às 20:59 Crente Conservador Bolsonarista
Nessas horas sinto falta da inquisiçao.
16-04-2021 às 18:18 Roque Amadeus
Quanta besteira, gente. A China está detonando conosco, justamente porque somos idiotas úteis a seu serviço, num Ocidente em que o certo é ser errado e o errado é ser certo. Não combateremos opressão com romance românticos melosos, mas com a noção de "ratos" em que a Ditadura Comunista Chinesa nos transformou.
16-04-2021 às 17:14 Lenny
Se não estou enganado, é a segunda vez que vejo um artigo aqui no MM. Acho que são muito bem-vindos e deveriam ter um espaço próprio. Fica a sugestão.